Ao contrário do que proclama a expressão popular “achado não é roubado”, o Código Penal entende como crime apropriar-se de bem perdido. Segundo o artigo 169 do diploma legal, cabe, a quem achar um objeto, devolver ao dono legítimo ou a autoridades competentes. Dessa forma, a justiça recebeu denúncia de um funcionário de cinema que, ao encontrar um celular perdido nas poltronas da sala de exibição, não comunicou à gerência da empresa e levou o aparelho para casa. Dias depois, o réu vendeu o telefone ao tio que, mesmo sabendo da origem ilícita, aceitou comprar, por valor inferior ao mercado. O comprador foi, por sua vez, acusado de receptação.
Ao encontrar bens perdidos, é necessário, independentemente do valor, fazer o que manda a lei. O dilema moral foi narrado pelo escritor Machado de Assis, no conto “A carteira”. O protagonista, o advogado Honório, encontra na calçada uma carteira recheada de dinheiro, que poderia ser a salvação para suas dívidas. Ele reflete e imagina a quitação de seus débitos junto a agiotas, ao mesmo tempo em que hesita contar as notas no interior do objeto. “A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele”, descreve o autor. Por fim, o personagem fictício decide verificar se há identificação no objeto e percebe que o bem pertence, na verdade, a seu amigo Gustavo, que, por uma ironia machadiana típica, mantinha um relacionamento extraconjugal com a esposa de Honório.
Se o superego falha quando o indivíduo não percebe o problema ético ao ficar com o produto encontrado, vale lembrar que a prática é descrita como “apropriação de coisa achada”. No texto da normativa que rege a infração penal, a conduta é descrita como “quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de 15 dias”. A pena prevista é detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Crimes como esse são de competência dos Juizados Especiais Criminais, por serem considerados de menor potencial ofensivo. Titular da 2ª unidade judiciária de Goiânia, o juiz Wild Afonso Ogawa, esclarece a tipificação do delito. “Na legislação antiga, apropriar-se de bem alheio perdido para proveito próprio era equiparado ao furto, em sua gravidade”, conta.
Hoje, a conduta ainda se assemelha à subtração de bem para fins de dosimetria penal, com base no artigo 155 do CP, que versa, justamente, sobre furtos. “Se o bem perdido for de pequeno valor e o réu, primário, é possível substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar, somente, multa”, elucida o magistrado,
Na denúncia real que ilustra a matéria, o tio do funcionário do cinema foi acusado, pelo Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), de receptação de mercadoria ilícita. Tal circunstância é possível de ocorrer, conforme explica Wild Ogawa. “A receptação é um crime acessório, isto é, precisa da condenação do primeiro delito de roubo ou furto, para ser cabível”.
O processo tramita em segredo de justiça na 8ª Vara Criminal de Goiânia. Consta dos autos que um homem e sua namorada foram ao cinema, num dos shoppings da capital, e não percebeu quando seu celular caiu do bolso. No dia seguinte, sentiu falta do aparelho e percorreu os lugares em que esteve na noite anterior, tendo, inclusive, voltado ao estabelecimento. Ele chegou a ir à seção de achados e perdidos do centro comercial e a pedir imagens das câmeras de monitoramento, mas não encontrou nada.
A vítima, conforme relatou, não cancelou o número e percebeu que a pessoa detentora do celular perdido estava fazendo telefonemas interurbanos. Ele relatou que tentou ligar e mandou mensagens a quem estava utilizando o bem, mas não teve êxito de obter resposta. Para recuperar o telefone, o homem fez um boletim de ocorrência policial e rastreou o equipamento. Dessa forma, foi descoberto, então, o paradeiro junto ao tio do funcionário do cinema, que havia comprado o produto por R$ 200 – cerca de R$ 600 mais barato em comparação ao valor da nota fiscal.
Coisa perdida x coisa esquecida
A doutrina jurídica compreende, ainda, a diferença entre coisa perdida e esquecida. “A primeira sumiu por estranha à vontade do proprietário, enquanto a segunda saiu da esfera de vigilância e domínio por simples lapso de memória”, conforme compara Wild Ogawa.
Assim, quem se apropria de itens esquecidos, como um celular deixado em cima da mesa do restaurante, pode ser enquadrado no crime de furto, ainda mais grave. A pena é reclusão, de um a quatro anos, e multa, segundo preconiza o artigo 155 do CP. O magistrado lembra, também, que encontrar bens perdidos ou esquecidos não é crime. O delito se configura quando o produto é mantido consigo, sem intenção de devolver.
Fonte: TJGO)