Até a tarde desta sexta-feira (24/4), 27 pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro foram protocolados na Câmara dos Deputados. Mas apenas um deles foi apreciado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a quem compete fazer uma análise inicial de denúncias por crime de responsabilidade contra o chefe do Executivo federal.
Esse único pedido acabou sendo indeferido, pois a denúncia era anônima, o que é vedado pelo regimento interno da Câmara.
O número de pedidos não analisados chama a atenção especialmente porque a intensidade da crise política em Brasília só tem aumentado. Declarações feitas nesta sexta-feira (24/4) pelo demissionário ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, podem resultar em novos pedidos de impeachment do presidente da República.
Além disso, nesta quinta-feira (23/4), o ministro do STF Celso de Mello solicitou a Maia informações acerca de um mandado de segurança impetrado na Corte. O MS (37.083) foi proposto por advogados para que o STF obrigue o presidente da Câmara a apreciar imediatamente um pedido de impeachment protocolado por eles em 31 de março.
A questão constitucional colocada, portanto, é se Maia deveria ter o poder de ditar o ritmo de eventual processo de impeachment, escolhendo a qual deles dará seguimento e em que momento o fará.
Juristas ouvidos pela ConJur avaliaram as normas que disciplinam a matéria e concluíram que inexiste regra que expressamente trate do assunto.
Crise política
Segundo Moro, Bolsonaro exonerou o diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo, porque queria ter alguém do “contato pessoal dele [na PF] para poder ligar e colher relatórios de inteligência”. “O presidente me falou que tinha preocupações com inquéritos no Supremo, e que a troca [no comando da PF] seria oportuna por esse motivo, o que gera uma grande preocupação”, disparou o ex-juiz.
No STF, a decisão de Celso de Mello não deixa de ser um recado ao Planalto. “Existe uma tendência de se tratar essas questões como interna corporis“, afirma o jurista Thomas Bustamante, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Assim, ao adotar entendimento diverso, o STF sinaliza que a matéria — poder de apreciação do presidente da Câmara sobre pedidos de impeachment — pode agora ser tratada de maneira distinta.
Em fevereiro, o decano do STF já havia afirmado que Bolsonaro poderia ter cometido crime de responsabilidade. À época, o presidente da República havia compartilhado, via redes sociais, uma convocação para uma manifestação hostil ao Congresso Nacional.
O que dizem as normas
Há basicamente três fontes normativas que tratam do impeachment: a Constituição da República, a Lei 1.079/50 (“lei do impeachment”) e o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. É o que explica o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-SP.
“A Constituição apenas prevê o instituto, que é o impeachment, e define competências básicas para autorizar e para julgar [um pedido de impeachment]. Ela não define o procedimento interno na Câmara dos Deputados. A ‘lei do impeachment’ também não define os procedimentos”, afirma.
As regras a respeito da tramitação de denúncias por crime de responsabilidade em tese praticados pelo presidente da República são então estabelecidas pelo regimento interno da Câmara dos Deputados. Trata-se de seu artigo 218, parágrafo 2º:
Recebida a denúncia pelo Presidente, verificada a existência dos requisitos de que trata o parágrafo anterior, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os Partidos.
O parágrafo 1º do mesmo artigo estabelece que a denúncia deve ser “assinada pelo denunciante e com firma reconhecida”, e estar “acompanhada de documentos que a comprovem ou da declaração de impossibilidade de apresentá-los, com indicação do local onde possam ser encontrados, bem como, se for o caso, do rol das testemunhas, em número de cinco, no mínimo”.
Segundo o regimento interno, então, o presidente da Câmara pode deferir o pedido, iniciando o processo de impeachment, ou indeferi-lo — o que pode gerar, segundo o próprio regimento interno, um recurso ao plenário.
“Mas o que não está solucionado no regimento interno é a omissão. Não se estabelece prazo para o presidente da Câmara decidir, nem alguma consequência [caso não haja decisão]”, explica Sundfeld.
Bustamante explica que o “recebimento” a que o parágrafo 2º do artigo 218 faz alusão é o ato do presidente da Câmara de fazer um juízo de admissibilidade da denúncia, e não o protocolo do pedido. Assim, a determinação de que a denúncia deve ser “lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita” aplica-se apenas após o pedido ser admitido. Se ele simplesmente não for apreciado — nem admitido, nem indeferido —, não há prazo a pesar sobre o presidente da Câmara.
Interpretações possíveis
Segundo Sundfeld, caso o presidente da Câmara seja omisso, as normas do artigo 218 e seus parágrafos podem ser interpretadas de duas maneiras: uma é a de que existiria um “indeferimento tácito” (decorrente da demora em analisar os pedidos); outra é a de que o regimento interno teria dado um poder discricionário ao presidente da Casa.
O problema da primeira interpretação, contudo, é saber qual seria o prazo que precisaria ter passado para caracterizar esse indeferimento tácito. “E aí caberá ao plenário decidir se houve ou não o indeferimento tácito. Se decidir que não houve, o recurso ao plenário é incabível. Se decidir que houve, o plenário vai acolher ou não a denúncia”, explica.
Segundo Bustamante, “depois de um certo lapso de tempo que vai se estendendo, é plausível a ideia de que se pode exigir do presidente da Câmara que dê alguma decisão sobre isso. O momento exato ainda tem que ser fixado. Mas chega uma hora em que se pode caracterizar uma desídia, um ato omissivo que tem efeitos jurídicos”.
O problema da segunda interpretação — a de que o chefe da Casa pode escolher quando analisará um pedido de impeachment —, para Sundfeld, “é que se dá ao presidente da Câmara um poder excepcional”. Restaria saber, portanto, se essa concentração de poder faz ou não sentido.
Para o jurista, “não é absurdo considerar que o presidente da Câmara recebeu esse poder”, pois ele “é um autoridade que, pela dinâmica parlamentar, decide muito dialogando com o colégio de líderes, e essa realidade política é importante para entender se esse poder é excessivo ou não”.
Sundfeld também destaca que o presidente da Câmara é uma autoridade que foi eleita pelos seus pares e que, no caso de pedidos de impeachment, faz um filtro especialmente grave, realizando para tanto um trabalho prévio de articulação.
Bustamente não endossa essa segunda interpretação. Para ele, “é muito problemático tratar isso como competência discricionária do presidente da Câmara”. “Maia está claramente não fazendo nada, o que aumenta o poder de barganha dele, de fazer análise de timing. Essa é a pior das interpretações”, afirma.
De todo modo, se o plenário da Câmara tivesse que avaliar todos os pedidos de impeachment (de Collor a Bolsonaro, 220 denúncias), certamente surgiria um problema operacional importante. Algum filtro deve ser realizado — concordam os juristas.
Jurisprudência
O STF tem sido chamado a se pronunciar sobre o assunto, principalmente por meio de mandados de segurança — como o que resultou na decisão de Celso (MS 37.083) desta quinta.
De modo geral, a jurisprudência da Corte tem preferido não pressionar a Câmara a apreciar os pedidos de impeachment, conforme afirmou Bustamante.
De todo modo, para o jurista Marcelo Campos Galuppo, também da UFMG (e autor do livro Impeachment — O que é, como se processa e por que se faz), a decisão de Celso de Mello que determinou a interpelação de Maia está correta. Afinal, “a Constituição deixa claro que a competência [de apreciar pedidos de impeachment] é da Câmara”, afirma.
Galuppo lembra ainda que o presidente da Câmara não deve fazer juízo de mérito sobre os pedidos, mas apenas avaliar se eles contêm condições da ação e justa causa.
O próprio STF cristalizou esse entendimento: a competência do presidente da Câmara dos Deputados “não se reduz à verificação das formalidades extrínsecas e da legitimidade de denunciantes e denunciados, mas se pode estender (…) à rejeição imediata da acusação patentemente inepta ou despida de justa causa”.
Galuppo também faz menção ao MS 34.087. No caso, um pedido de impeachment contra o então vice-presidente Temer havia chegado à mesa de Eduardo Cunha, presidente da Casa à época, que indeferiu a denúncia durante o recesso parlamentar.
O autor do pedido impetrou o mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal com vistas a invalidar o despacho de Cunha. O relator do caso, ministro Marco Aurélio, deferiu liminarmente o pedido, determinando que à denúncia fosse dado seguimento, no seio de Comissão Especial a ser formada para tal apreciação.
A Câmara ignorou a decisão de Marco Aurélio que, mais tarde, chegou a pedir ao MPF que investigasse o assunto.
Ironicamente, o episódio resultou em pedido de impeachment contra o próprio ministro Marco Aurélio, rejeitado pelo então presidente do Senado, Renan Calheiros.
Enquanto as limitações aos poderes do presidente da Câmara não são definidas, caberá às instituições da República tentar lidar com esse vácuo normativo. “Não haverá resposta categórica e conclusiva sobre essas questões. O problema é que o caminho será construído em contexto conturbado, do qual dificilmente sairão boas decisões”, diz Bustamante.